Crítica Literária: Barata, Minha Barata de Alberte Momán Noval


Barata, Minha Barata
, publicado em 2025 por Alberte Momán Noval, é uma obra visceral e perturbadora que desafia as convenções literárias tradicionais, mergulhando em um universo distópico onde a degradação humana, o poder opressivo e a presença onipresente das baratas simbolizam a decadência de uma sociedade à beira do colapso. Dividido em cinco partes — “Ninfa”, “Imago”, “Ciflutrina”, “O Exercício do Poder Disciplinar” e “Infrapenalidade. Castigo” —, o romance combina uma narrativa fragmentada, imagens surrealistas e uma crítica contundente às estruturas de poder, ao capitalismo e à desumanização. Esta crítica analisa os elementos temáticos, estilísticos e estruturais da obra, destacando sua relevância no contexto literário contemporâneo e sua capacidade de provocar desconforto e reflexão sobre a condição humana em um mundo dominado pela violência e pela alienação.

Contexto e Estrutura

A obra, conforme indicado na página de créditos, é uma criação autoral completa de Momán Noval, que assina o texto, a edição e o design, com a capa ilustrada por Bogomi Mihaylov. A licença do livro, que permite cópias e distribuição desde que não sejam feitas alterações ou usos comerciais, reflete uma intenção de democratizar o acesso ao texto, mantendo a integridade da visão do autor. A estrutura do romance é dividida em cinco partes, cada uma com um título que evoca estágios do ciclo de vida das baratas ou conceitos de controle social, como “Ciflutrina” (um inseticida) e “O Exercício do Poder Disciplinar” (uma referência direta às ideias de Michel Foucault sobre vigilância e punição). A narrativa é fragmentada, com cenas curtas e abruptas que alternam entre descrições cruas de violência, passagens oníricas e reflexões filosóficas, criando uma sensação de desorientação que espelha o caos do mundo retratado.

A história segue um caminhante sem nome, uma figura central que vagueia por uma cidade opressiva, marcada por desigualdades sociais, violência explícita e uma presença constante de baratas, que assumem papéis cada vez mais dominantes à medida que a narrativa avança. Outros personagens, como a moça, a mulher (antiga proprietária da padaria) e o gigante, aparecem em momentos cruciais, representando diferentes facetas da resistência e da submissão em um sistema que os esmaga. A estrutura não linear e a ausência de uma resolução clara reforçam a sensação de um mundo sem esperança, onde a luta pela sobrevivência é constantemente frustrada por forças externas.

Temas Centrais

A Degradação Humana e a Desumanização

Um dos temas centrais de Barata, Minha Barata é a degradação da condição humana em um ambiente distópico. A cidade descrita é um espaço de miséria, violência sexual, exploração e alienação, onde os personagens são reduzidos a meros instrumentos de sobrevivência. Cenas como a da criança forçada a realizar atos sexuais com um homem obeso (p. 4) ou do gigante que sustenta sua existência vendendo seu corpo em clubes de intercâmbio (p. 73) são descritas com uma crueza que choca e incomoda, forçando o leitor a confrontar a brutalidade de um sistema que normaliza tais abusos. A presença constante de baratas, que se alimentam de restos e invadem espaços humanos, simboliza essa degradação, sugerindo que os insetos são os verdadeiros beneficiados do caos social: “Esses insetos foram os únicos beneficiados com o caos” (p. 3).

As baratas, aliás, transcendem o papel de meros símbolos e assumem uma agência própria na narrativa, especialmente na Parte II (“Imago”), onde uma barata dirige um carro de luxo (p. 43) e, na Parte IV, onde outra barata fala e negocia com os humanos (p. 106). Essa antropomorfização dos insetos reflete uma inversão de poder: enquanto os humanos são reduzidos a um estado quase animalesco, as baratas emergem como figuras de autoridade, ocupando espaços de poder e até ridicularizando os humanos em sua miséria.

O Poder Disciplinar e a Vigilância

Inspirado nas ideias de Foucault, o romance explora o exercício do poder disciplinar em uma sociedade onde a vigilância e o controle são onipresentes. A “linha branca” que separa as classes sociais (p. 23) e os muros que isolam os personagens na Parte IV (p. 100) são metáforas claras para as barreiras físicas e sociais que mantêm as pessoas em seus lugares. O “Comitê”, uma entidade vaga mas opressiva mencionada ao longo da narrativa, representa uma autoridade invisível que regula a vida dos personagens, proibindo atos como “sonhar além das fronteiras” (p. 11) ou escrever poesia (p. 10). A música ensurdecedora que tortura os personagens na Parte IV (p. 103) é um exemplo de punição sônica, uma forma de controle que não deixa marcas físicas, mas destrói psicologicamente.

A presença da polícia, que aparece em momentos cruciais para reprimir qualquer forma de resistência, reforça essa ideia de um sistema disciplinar implacável. A cena em que a moça é brutalmente espancada por policiais (p. 75) e a subsequente construção do muro (p. 100) ilustram como o poder não apenas pune, mas também isola e marginaliza aqueles que desafiam sua autoridade. A referência explícita a Foucault na citação “Uma reforma reclamada, exigida por aqueles a quem concerne, deixa de ser uma reforma para converter-se numa ação revolucionária” (p. 27) sublinha a tensão entre a luta por mudança e a repressão violenta do sistema.

Resistência e Derrota

Apesar da opressão, Barata, Minha Barata apresenta momentos de resistência, ainda que frágeis e frequentemente infrutíferos. O caminhante, com sua associação ao Comitê e seu envolvimento em um plano subversivo (p. 39), representa uma tentativa de desafiar o sistema, mas sua incapacidade de reconhecer o homem linchado como um “subversivo” (p. 33) sugere uma desconexão entre os atos de resistência e suas consequências. A moça, por sua vez, luta para manter seu espaço na padaria, enfrentando tanto a polícia quanto as baratas (p. 83-85), mas sua vitória é temporária, culminando em sua destruição na explosão final (p. 111). O gigante, com sua força física e atos de solidariedade, como salvar a moça dos policiais (p. 76), é talvez o símbolo mais poderoso de resistência, mas até ele sucumbe ao cansaço e à desorientação no final.

Essa constante derrota dos personagens reflete uma visão pessimista sobre a possibilidade de mudança em um sistema que é estruturalmente projetado para esmagar qualquer oposição. A explosão final, que transforma o “intramuros” em uma “cratera no epicentro” (p. 111), é um desfecho apocalíptico que elimina qualquer esperança de redenção, sugerindo que a única saída para a opressão é a aniquilação total.

Estilo e Linguagem

O estilo de Momán Noval é marcado por uma prosa densa e fragmentada, que combina descrições vívidas com passagens filosóficas e diálogos abruptos. A linguagem é crua e, por vezes, grotesca, especialmente nas cenas de violência sexual e corporal, que são descritas com um realismo quase clínico. Frases como “A barata jantava os restos de um animal morto em concorrência com outras” (p. 3) ou “O suor, caindo pela testa, queimava o interior do olho” (p. 91) criam imagens sensoriais intensas que imergem o leitor no mundo sujo e caótico da narrativa.

A repetição de motivos, como as baratas, o sangue e os cigarros, funciona como um fio condutor que une os fragmentos narrativos. A linguagem também é permeada por referências filosóficas e literárias, como as citações de Foucault e o uso de termos como “infrapenalidade” (p. 109), que evocam conceitos de punição e controle. A escolha de palavras estrangeiras, como “TOC TOC” (p. 106) ou frases em línguas desconhecidas (p. 96), reforça a sensação de estranheza e alienação, enquanto a ausência de nomes próprios para a maioria dos personagens contribui para sua universalidade e desumanização.

Crítica Social e Relevância

Barata, Minha Barata é uma crítica feroz ao capitalismo, à desigualdade social e à desumanização promovida por sistemas de poder. A cidade distópica, com suas divisões de classe marcadas pela “linha branca” e sua economia baseada na exploração sexual e na violência, reflete as desigualdades do mundo contemporâneo. As baratas, que assumem papéis de poder e até zombam dos humanos, podem ser lidas como uma metáfora para as forças capitalistas que prosperam às custas da miséria alheia, consumindo os restos de uma sociedade em colapso.

A obra também dialoga com questões de resistência e repressão, especialmente relevantes em um contexto global de crescente autoritarismo e vigilância. A construção do muro (p. 100) evoca imagens de guetos e campos de concentração, enquanto a música ensurdecedora (p. 103) remete a técnicas modernas de tortura psicológica. Ao mesmo tempo, a luta da moça para manter seu espaço na padaria (p. 83-85) e a solidariedade do gigante (p. 76) oferecem vislumbres de esperança, ainda que efêmeros, que ressoam com movimentos de resistência contemporâneos.

Conclusão

Barata, Minha Barata é uma obra desafiadora e profundamente inquietante, que combina uma narrativa fragmentada, imagens grotescas e uma crítica contundente às estruturas de poder. Alberte Momán Noval cria um mundo distópico onde a degradação humana, a vigilância e a resistência coexistem em uma tensão constante, representada pela onipresença das baratas e pela violência do sistema. A prosa densa e as referências filosóficas exigem do leitor um esforço ativo para decifrar suas camadas de significado, mas é precisamente essa complexidade que faz da obra uma experiência literária poderosa. Apesar de seu pessimismo, o romance é um convite à reflexão sobre as forças que moldam nossa sociedade e as possibilidades — ou impossibilidades — de resistência em um mundo que parece destinado ao colapso. Barata, Minha Barata é, assim, uma obra que não apenas provoca, mas também perdura, como um eco incômodo das contradições de nossa própria existência. 

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